Há uma coisa que me incomoda em nós Portugueses. Não digo que sejamos os únicos, mas incomoda-me. Das muitas vezes que observo o público a sair da sala de espectáculos (faço um part-time no Cine-Teatro Tivoli), a seguir a uma peça de comédia ou drama, que comove, que faz rir, chorar ou de alguma forma visitar campos da experiência humana aos quais não acedemos no dia-a-dia, vê-se na cara das pessoas a alegria que o artista lhes transmite, enquanto olham para o palco. Vê-se e dá gosto ver, para quem, como eu, gosta de observar.
Mas basta a peça terminar, o pano fechar-se, e as pessoas virarem costas ao palco, que lá se vai qualquer esboço de sorriso, qualquer semi-aura de bons sentimentos, e volta tudo à habitual carrança que tanto nos verga o porte e que em nós próprios criticamos. Esta vergonha de existir, mesquinho-invejosa, de um povo que não se liberta da poeira acumulada com medo de ser... simplesmente feliz, é que me faz confusão. Depois disto também eu fico triste.
Ao menos os brasileiros que cá estão não têm vergonha de ser alegres. Bem-vindos sejam.
Enquanto lanchava estive a ver um pouco do Opinião Pública, na SIC. Vivemos num país de cheio duma sobressaltada indigência mental. Não é a surpresa que deprime, é a relembrança.
O que eu acho:
O Ministro Correia de Campos tem de facto uma forma de falar politicamente desastrada. Aquela espécie de graçola sobre os números da sinistralidade rodoviária é erro de palmatória - um político não diz graçolas à comunicação social, ponto final. É um convite ao desastre. Já sabemos que a selva mediática é acéfala, não a provoquemos.
A qualidade ou a prudência da oralidade de Correia da Campos não é argumento relevante para a discussão da reformulação das urgências. É um aspecto de carácter estético, que pode importar, no máximo, para considerações eleitoralistas.
Não acho que a medida tenha sido mal explicada. Começou a falar-se nisso há já bastante tempo, e, na altura das maternidades, já se antevia a reedição da novela, com as urgências. Havia uma comissão a estudar, ia apresentar o estudo e esse mesmo estudo foi apresentado numa conferência de imprensa (se não me engano), e as suas conclusões, gráficos e demais dados foram apresentados pela comunicação social. O estudo é público. Eu vi na televisão os gráficos. Mais: o ministério tem a funcionar na internet um site justamente para esse efeito. Que quem não vê telejornais não conheça, entende-se (e há aí margem para melhorar o conhecimento público das medidas), mas o problema não está no Ministro, ou no governo, que pelos vistos anda a falhar na sua propaganda.
Os autarcas afectados (que os há) portaram-se mal. Sabiam o que aí vinha, tinham reunido com o ministro, e (partindo do pressuposto que entendem que há medidas boas que ainda assim têm prejudicados) não se limitaram a fazer "um bocadinho de barulho" para tentar ficar "ao lado" da população, não: organizaram manifestações de protesto. E depois o mau da fita é Correia de Campos por dizer que olhará para eles de outro modo depois disso. Porque não atende aos apelos dos "legítimos representantes" das populações, como se não fossem ambos, governo e autarquias, eleitos pelo mesmo povo, para patamares diferentes por vezes divergentes. Haja decência.
A imprensa anda um pouco confusa sobre o que terá acontecido entre Sócrates e Correia de Campos. Que Sócrates tenha querido intervir politicamente, faz sentido. As manifestações foram relevantes e impõe-se uma voz mais autoritária e mais simples, directa, assertiva que a de Correia de Campos. Não pode (ou não deve) no entanto acontecer um recuo, uma cedência à contestação infundada, face às conclusões do estudo. Isso seria um muito mau sinal, um péssimo precedente.
Acho sinceramente que o que realmente urge é um pouquinho mais de racionalidade e honestidade intelectual.
Actualização:
Parece que no Prós & Contras venceu a racionalidade, segundoestes amigos (e outros).
«Ia eu muito bem montado no meu solípede, quando a certa altura do declive do terreno o quadrúpede espanta-se. Projecta-me na atmosfera e dou um tremendo baque no solo do qual saí fortemente contuso.»
Um amigo do meu avô a explicar-lhe porque se encontrava de perna partida na cama do hospital, há alguns anos.
Anseia portanto pelo dia em que todos os liberais queiram ver imposta via código penal uma disposição que não é consensual nem eficaz, dessa forma impondo sobre os restantes uma concepção da vida que não se alicerça na razão, chamando assim para o debate público a fé e a emoção, com vista ao aumento do exercício da coerção estatal naquele que é um dos seus maiores poderes, o de retirar a liberdade.
Disse Liberais?
(nada disto é novo, eu sei, mas não consigo deixar passar...)
Tive conhecimento da Declaração de Bruxelas Vs. a Declaração de Berlim, ambas em germinação, via OS TEMPOS QUE CORREM, do Miguel Vale de Almeida. A polémica estará no facto de a declaração proposta por Angela Merkel ser uma ressurreição da referência a Deus no preâmbulo da defunta constituição europeia.
Devo (ou quero) dizer cinco coisas:
Um texto fundacional, como é esta pretensa constituição, não é apenas um reconhecimento daquilo que já fomos ou daquilo que nos trouxe aqui, do nosso passado. É também uma afirmação do presente e uma expressão de vontades para o futuro, justamente pelo facto de no futuro também se-la ter em conta como expressão do passado. Temos portanto de considerar os reconhecimentos e as vontades; passado e futuro. A justificação da herança cristã na matriz de valores europeia não é suficiente. Pode ser relevante, mas não é suficiente.
Não é uma constituição que vai mudar os povos. Referências ou "apelos" de determinada ordem não configuram uma mudança efectiva nas sociedades. Por outras palavras, a Europa em si não ficará mais ou menos secular ou laica se houver uma referência a Deus na constituição. Não ficará no imediato mas a porta entreabrir-se-á. Isto é importante. Não tenho provas, mas acredito que estes simbolismos podem ser perniciosos e poderosos no longo prazo. Se todos tivermos crescido numa Europa que fala em Deus, o caminho para a confusão entre estado e religião está indicado. Não percorrido, mas indicado. E isso, basta-me. Somos 480 milhões.
Esta é apenas mais uma das iniciativas políticas europeias não pedidas pelos povos, e pelos políticos a estes impostas. O consenso dos círculos da alta política europeia quanto ao aprofundamento da UE, não pode dispensar a aprovação por parte dos respectivos povos. Muito embora eu seja favorável a uma solução minimalista de tendência federal (o que é relativamente pró), não posso encarar com bons olhos esta persistente altivez política, que insiste em arredar os povos das soluções políticas de grande (enorme!) alcance. Temo sinceramente que se acumule capital de descontentamento suficiente para que haja sacudidelas, por norma excessivas e prejudiciais.
Creio que há efectivamente a necessidade de um novo tratado. O de Nice já não serve numa UE a 27 e há variadíssimos aspectos que importa rever. Acho que a melhor opção, táctica ou estrategicamente, passa por uma assembleia constituinte. Uma assembleia constituída por representantes directos dos povos, eleita propositada e exclusivamente para a elaboração e aprovação dum texto fundacional da UE. Essa é talvez a melhor garantia de que a UE corresponda àquilo que os seus povos querem. Desta forma, garante-se que os tratados serão revistos ou substituídos, as questões que passam pela agilidade (alegada obsolescência dos tratados anteriores) serão resolvidas, demais considerações consensuais serão tidas em conta (de outra forma muitas seriam esquecidas) e tem-se o aprofundamento que os cidadãos querem. Os euro-cépticos também serão eleitos.
As minhas preferências no que toca a essas hipotéticas eleições, passariam por um tratado-constituição curto, simples, fácil de entender, obviamente laico, claramente afirmatório do princípio da subsidiariedade, de tendência federal conjugando a igualdade dos povos com a igualdade dos estados. A declaração de Bruxelas é um excelente base para a declaração de princípios.
A afirmação do AAA é fácil, está a jeito talvez pela maior exposição mediática do universo PCP, eu próprio poderia tê-la dito, en passant. No entanto, após a reflexão proporcionada, vejo que, no geral, não faz sentido. Bom naco de texto.
Hoje perguntaram-me "então e agora os fiscais da EMEL já podem passar multas. Achas isto bem?". Claro que a minha resposta foi um rotundo "acho". Sobretudo pelo que me prejudica os estacionados em segunda fila, mas também pelos grotescos encavalitanços automóveis que estragam (ainda mais) a paisagem urbana.
Não consigo deixar de entrever nesta frívola indignação "de quem são eles para fazer trabalho de polícia", o simples e injustificável "fugir com o rabo à seringa" ou quanto muito uma óbvia contradição com os vitupérios que o próprio lançará aos concidadãos que lhe obstruem a passagem pedonal ou contribuem para o congestionamento.
A pretensa justificação de "eles" não serem polícias, mais não é do que um expediente trôpego para justificar que se não puna aquilo que todos concordam que deva ser punível. Como se a vontade dos homens dependesse do direito por eles construído e não o contrário. Se do ponto de vista sistémico, o modelo de financiamento e de funcionamento da EMEL é sustentável, isso já poderemos discutir. Alguém sabe como é sustentada a EMEL? Fica o repto.
«O comportamento do senhor ministro da saúde é de lamentar. Arvora-se no maior de todos, julga que tem as soluções para resolver os problemas de saúde, ofende os que contestam as suas decisões, ignora o desagrado dos seus correligionários políticos, esquece-se que somos um país pobre com desigualdades sociais e regionais muito marcadas, quer aplicar as regras dos países mais ricos, esconde-se atrás de “guidelines” técnicos, pretende ignorar a triste realidade de quem vive nas zonas do interior, enfim, um todo poderoso que contraria o “espírito” socialista, tentando esconder as preocupações económicas numa área que irá constituir uma fonte adicional da desigualdade social: a saúde!»
Não podia discordar mais. Que Correia de Campos tenha tiques menos agradáveis à vista desarmada, até dou de barato, mas não é por aí que o gato vai às filhozes. Acho óptimo que julgue ter "as soluções para resolver os problemas de saúde", que ignore "o desagrado dos seus correlegionários políticos" e que se baseie em "“guidelines” técnicos". Quanto a aplicar as regras dos países mais ricos... deve-se daí presumir que a racionalização dos recursos é só para os mais ricos? E quanto à desigualdade na saúde, não sei se viu os números, viu? É que quando ninguém olha para os números, quem sofre são as pessoas. Não me digam que já se esqueceram do eng. Guterres.
Que a massa acéfala de Chaves, mais os seus risíveis líderes locais se sintam lesados nos seus interesses, compreende-se. É factual, objectivo. E que esses mesmos lesados não consigam, por emocionados, ver para além do seu universo de três quilómetros quadrados, não me espanta. Lamento, mas não me espanta. O que já me espanta e ainda mais lamento é o facto daqueles que comentam a acção política, supostamente à distância e munidos de alguma isenção, falharem em compreender uma coisa tão simples como, esta medida que, muito embora tenha prejudicados, é, no cômputo geral, positiva. Objectivamente. Já nas maternidades foi a mesma coisa. O Ministro era um assassino... pior, um neo-liberal! Estaremos cá para ver os resultados?
Actualização:
Leio que o governo cedeu. Mau sinal, mau precedente.
«Para serem levados a sério, os liberais portugueses têm de responder, pelo menos, a estas duas questões: i) que tipo de Estado consideram tolerável, definindo, claramente, as funções que devem competir ao poder público e as que devem regressar à sociedade civil; ii) como acham que se pode lá chegar. Até lá, o liberalismo português poderá caracterizar-se, como dizia o outro, por words, words, words. Simpáticas, mas praticamente inúteis.»
Concordo, mas dava jeito uma coisa: poder. É que os liberais Portugueses, que os há, estão dispersos... umas franjas num partido, outras noutro, uns sem partido, outros misantropos, outros preguiçosos. O problema não está em responder-se às duas questões colocadas, pois isso já foi feito muita vez e há-de continuar a ser. O que realmente justifica não passarmos das palavras é, não haver... liberais no poder.
Esta é a situação actual. O que devemos fazer (nós liberais) é pensar como poderemos sair dela e chegar a uma outra onde vejamos um liberalismo mais pujante. Como congregar? Quem congregar? Num novo partido? Noutro tomado de assalto (estilo PNR)? Influenciar paulatinamente um dos grandes? Fazer simplesmente um Think-Tank? Acho que estas questões estão a montante das do Rui. Sobre isto tenho pensado, e provavelmente escreverei.
Hoje a passeata pela blogoesfera foi prolífera. Não sei qual a varíavel parasita que o poderá justificar, mas lá que anda tudo inspirado anda.
Na secção do lado, aí onde diz "Folhagem Recomendada" estão os artigos que eu leio e decido partilhar (via Google Reader). Todos eles valem a pena e ninguém ali fala de futebol.
Mas há três postas que eu não posso deixar de destacar mais um pouco. São eles:
Diz Pedro Marques Lopes no 31 da Armada, sobre o desemprego:
«A frase era bastante clara, dizia, sem rodeios que, se fosse eleito, o Governo criaria 150.000 novos empregos.»
Engraçado como nós construimos as memórias. Não era uma frase, não era clara, e não dizia que "criaria 150.000 novos empregos". Era um cartaz, com a cara de Sócrates, dizia "150.000 novos empregos" e em baixo (ou em cima) dizia "objectivo", de forma a ler-se, "objectivo: 150.000 novos empregos". Que, em campanha, tal fosse entendido como uma promessa, ainda vá, e o próprio Sócrates sabê-lo-ia. Mas a frase não era assim tão "clara".
Eu sei que sou picuinhas, mas nestas coisas prefiro o rigor. Quanto ao resto do artigo, mais ou menos de acordo.
Subscrevo com cada letrinha este post do Rui, no Blasfémias. Como é curtinho, olha, vai todo:
Imaginar que o referendo do aborto possa fracturar os liberais portugueses, ao ponto de os dividir inexoravelmente em duas, três ou mais linhas inconciliáveis, é desconhecer por completo a essência e a ética do liberalismo. Se há algum dogma intransponível para os liberais, a liberdade de consciência individual será seguramente o primeiro de todos. Ora, o aborto é, por excelência, uma escolha que depende, em primeira instância, da consciência de cada um, antes de depender de qualquer juízo legal ou moral. Por isso, poderão os liberais portugueses vir a fraccionar-se em razão de muitos outros assuntos. Se o fizerem por esse motivo, é porque provavelmente têm da liberdade uma ideia falseada.
O respeito pelas minorias no caso dos dilemas morais é conceder a soberania às comunidades locais de poderem regulamentar (e até proibir) actividades que estejam (ou sejam) legalizadas.
No final dá até um exemplo:
Quantos bairros residenciais começaram aos poucos a serem invadidos de "vida nocturna" pelo seu licenciamento imposto a nível municipal e nacional, contra a vontade local e prejudicando até o seu valor comercial? Por outro, se algum tipo de licenciamento fosse concedido com receitas a reverterem para o "bairro" (ou o da Junta de Freguesia), estes poderão ponderar da utilidade da receita.
Certíssimo, nada mais liberal que esta receita, o princípio da subsidiariedade. O problema é quando CN aplica este mesmo raciocínio à despenalização do aborto, numa crítica implícita:
foi o que não aconteceu com o aborto, onde a sua prática económica (ou gratuita) deve estar sujeita a não oposição local.
Pergunto eu então qual será o prejuízo para um cidadão, decorrente do facto de na sua localidade, mulheres terminarem voluntariamente a sua gravidez até às dez semanas num estabelecimento de saúde legalmente autorizado, que justifique a, alegadamente legítima, oposição local?
Não me digam que vamos parar outra vez à tolerância da intolerância...
Alberto Martins no seu melhor estilo diz no Público «que não haverá aconselhamento obrigatório na lei para as mulheres que queiram abortar até às dez semanas, porque isso seria uma imposição “à revelia” do resultado do referendo».
Em que é que consiste exactamente um aconselhamento obrigatório? É obrigarem a mulher a uma espécie de interrogatório ao contrário? "Agora a senhora tem de vir para aqui, porque o aconselhamento é obrigatório, vai ter de nos ouvir, tá bem?"
Além de que no referendo votou-se a despenalização, não coisas como esta que são claramente de regulamentação.
Miguel Frasquilho tece aqui algumas considerações sobre a "instituição referendo".
Apesar de eu até ser céptico da bondade do referendo (em geral), não acredito que a dita instituição esteja em perigo. Frasquilho alega que o "desencanto" de alguns relativamente ao referendo se prende com o facto dos votantes terem sido sempre menos de metade dos eleitores, 31.9%, 48.3 e 43.4%, repectivamente. Essa fraca afluência dever-se-ia ao desinteresse natural das matérias referendadas, temas que não seriam «do topo da agenda do país, ou (...) considerados vitais pela população. (...)Eram, talvez, a prioridade para uma determinada franja da classe política. Mas não mais do que isso. E, definitivamente, não o eram para a população.»
Até aqui estamos de acordo. Mais ou menos. Onde me parece que discordamos é quando Frasquilho começa por dizer que se tivesse sido submetida a referendo a adesão à CEE em 1986, a abstenção teria sido bem menor; e se mostra convicto que a abstenção sairia derrotada caso fossem submetidas ao eleitorado as "questões que verdadeiramente interessam o país e mobilizam a população".
Discordo em primeiro lugar (numa perspectiva metodológica, se quiserem) porque, quanto ao hipotético referendo da CEE, nunca saberemos. Podemos apenas especular. E em segundo lugar, porque muito embora eu concorde que os temas até agora avançados não estimulam o eleitorado, não vejo muitos mais que o possam fazer. Simplificando, diria que a culpa está do lado do eleitorado e não dos temas. Não quero ser derrotista, gostaria muito que as coisas fossem de outra maneira, mas não vejo que estimulante tema político, passível de ser referendado, possa vencer a apatia reinante. Miguel Frasquilho, pelo menos no post, não dá nenhum exemplo.
Dando por adquirido que a liberdade de um indivíduo acaba onde começa a dos outros (neste caso o outro é o feto), parece-me uma clara contradição ver um liberal apoiar o "sim".
Não, Bekas, contradição é um dito liberal apoiar o Não. Porque sendo discutível o verdadeiro estatuto do feto, e estando a consideração da superioridade da vida intra-uterina face à liberdade da mulher, sob disputa, iliberal é votar de forma a impor aos outros uma determinada concepção sobre o momento em que a vida intra-uterina adquire pleno direito, ou pelo menos um direito prevalecente sobre o direito da liberdade da mulher. Sobretudo quando essa imposição não assenta em fundamentos racionais e científicos, apenas em questões de dogma, afecto ou fé.
Ver um votante do Não a entitular-se liberal é que é para rir.
No post anterior, duvidei da bondade do instituto do referendo nos próximos tempos, pelo menos. Continuo a duvidar, mas não demorou muito para me lembrar da excepção mais óbvia: a constituição europeia.
A haver um tratado constitucional Europeu, o qual concordo que deva existir, apenas poderá ser ratificado duma de duas maneiras:
por referendo nacional em cada um dos estados;
por aprovação maioritária em assembleia constituinte à escala europeia, eleita propositada e exclusivamente para elaborar e aprovar o texto constitucional.
Sou favorável a que se alcance um tratado estruturante da UE a 27, e a solução que prefiro passa por uma contituição pequena, simples, minimalista, de tendência federal. Alcançá-lo pela via da assembleia consituinte, parece-me mais exequível na prática, e sinceramente prefiro-a a um processo de ratificação em 27 referendos nacionais, nos quais as pessoas tendem a responder a quem lhes pergunta em vez de responderem ao que lhes perguntam. De qualquer maneira, não está morto, o referendo.
Como tenho vindo a dizer desde 1998, os Portugueses não querem saber dos referendos nem dessas coisas lá da política. Num, estava sol e ganhou o Não, noutro chovia e ganhou o Sim. Ambos tiveram abstenção suficiente para fazer corar qualquer Democracia. Triste, mas ainda assim menos triste hoje que em 1998.
Sempre (vá lá, nos últimos seis anos) disse que não fazia sentido referendar esta questão. Por várias razões:
o Código Penal usa-se quando determinada disposição é consensual, necessária e eficaz. Não é nenhuma das três, no caso.
De facto, esta é uma questão de consciência, mas o que significa isso? Não deveria isso significar que se restringe à cosciência de cada um? Não deveria isso significar que não deveria estar sujeita à imposição da maioria? Eu acho que sim. Relembrando palavras de Ghandi, "Em assuntos de consciência, a lei da maioria não tem qualquer lugar". Nesse sentido, despenalizar a IVG em 25% do tempo da gestação é, diria, quase obrigatório.
A pergunta tem consequências assimétricas: uma opção aumenta a coerção estatal sobre os cidadãos (cidadãs, melhor dizendo), enquanto outra a diminui. Votar numa das opções implica impor aos restantes uma visão sobre uma matéria não-consensual (e servir-se dos mecanismos de repressão do estado de direito), enquanto que votar na outra opção não implica qualquer imposição, coerção. Numa democracia liberal, a escolha é clara.
A interpretação dos resultados, no plano prático, provavelmente será igual à que seria caso o referendo fosse vinculativo. Acrescenta-se uma alínea de exclusão da ilicitude ao Código Penal, arranja-se o SNS para poder receber os abortos outrora clandestinos, regulamenta-se a objecção de consciência (quem é objector de consciência é-o para o público e privado) e preparam-se os processos para o acompanhamento e aconselhamento das mulheres que desejem abortar até às 10 semanas. A única diferença será talvez os desprestígio do referendo. Ainda estou para ver uma situação em que acredite na sua bondade.
Faria muita coisa, claro. Uma delas seria investir nestes senhores, e comprar-lhes um carrito. Ou dois. Ora vejam.
Esta pequena maravilha é totalmente eléctrica e extremamente eficiente. Carrega em 3 horas ou menos e tem autonomia para pouco mais de 400km. Sensivelmente duas vezes mais eficiente que o Toyota Prius, bate um Lamborghini fazendo pouco mais de 4 segundos dos zero aos cem.
... e depois estudar. As conclusões do estudo não podem é contrariar aquilo que já foi decidido, claro. Um estudo serve apenas para justificar aquilo que foi, sem dúvida, uma grandiosa e acertada decisão, fruto da universal sapiência dos nossos iluminados governantes. Não me digam que acham que o estudo serviria para decidir melhor... Que disparate!
[A] avaliação do custo/benefício do empreendimento [Ota] "é um procedimento obrigatório" que já estava previsto há mais de um ano, disse hoje um representante do Ministério das Obras Públicas.
Vi os dois Prós&Contras do aborto. Sorvi avidamente aquilo tudo, por várias razões. De uma forma geral gostei, mas há sempre coisinhas que nos desassossegam e outras que nos agradam, e é justamente sobre isso que me interessa aqui escrever.
A primeira impressão, já habitué dos debates públicos, é a tendência para reduzir o debate duma troca racional de argumentos a uma luta (muitas vezes desonesta) entre dois lados da barricada. O nosso lado, Vs. o outro, sempre. Claro que neste referendo há apenas dois lados, é certo, mas a verdade, assim como cada argumento, vale por si e não depende de quem a defende. Mesmo pessoas insuspeitas, com "bagagem" intelectual (seja lá o que isso for), incorrem frequentemente no erro de apenas argumentar no que respeita à legitimidade moral de um dos lados da barricada.
Lembro-me, por exemplo da intervenção do António Pinto Leite, no segundo debate dizendo-se da ala mais moderada do Não, com um estilo honesto e conciliador. Centrou a sua argumentação apenas em juízos éticos sobre os comportamentos no passado dos dois lados da barricada! Qualquer coisa como "quem eu vi fazer alguma coisa pelas mulheres, foram os do Não". A meio da intervenção ainda disse que não era "por aí" que queria ir, mas a verdade é que esse era o único argumento descortinável nas suas palavras e tanto que era, que mais tarde foi repetido. Obviamente, argumentos do género "A defende X, B defende Y. Como A tem melhor reputação, prefiro X" só podem ser usados quando não há mais informação disponível, e muito menos devem ser invocados numa discussão racional, mas enfim.
A outra degenerescência comum nestes debates é enveredar por caminhos de pura apreciação estética, uma espécie de argumentação impressionista, muito evocativa de sentimentos conexos, mas sem qualquer espécie de suporte racional. Lembro-me da intervenção dum jovem, já visivelmente cansado e sem grande clareza no discurso fazer uma intervenção em que quase teatralizava todo o debate, cheio de adjectivos, algo artístico, um pouco ridículo, na minha opinião, mas sem sombra de racionalismo crítico. "Nós somos do Não. E o Sim insiste! Nós não queremos." ouviu-se-lhe umas quantas vezes, em tom dramático. Fez-me pena. E pena faz-me não ter o vídeo disso.
Os painéis: Rui Pereira e Heloísa Santos estiveram muito bem. Heloísa leva tudo à frente, e não deixa pedra sobre pedra, e Rui Pereira não perde um fio entre pensamentos, e consegue exprimi-los impecavelmente. O painel do Não foi, em parte, risível. Adorei a parte em que o cirurgião Manuel Antunes ficou confundido com as perguntas de Rui Pereira. Assunção Cristas tem uma presença muito simpática, mas que se revela artificial, quando o verniz estala. Nada brilhante, vocabulário pobre e ideias pouco articuladas. Aquela manipulação dos números, nos gráficos cor-de-rosa foi duma desonestidade que não esperava, é insultar as pessoas.
Agora as coisas boas. Gostei de ouvir: Vital Moreira, talvez aquele que disse mais vezes as coisas que eu mais queria que fossem ditas; Rui Pereira, com uma energia, clareza e convicção que apreciei; Vera Jardim, uma voz sensata e peremptória; Vasco Rato, desarmante, a colocar as questões no sítio; Daniel Oliveira, embora o estilo não seja o meu preferido, esteve muito bem em várias ocasiões, nomeadamente aquela última em que disse que "A palavra Sim ainda quer dizer sim, a palavra Não ainda quer dizer não e a pergunta fala em despenalização. Despenalização ainda quer dizer despenalização". Ora vede.
De resto, nada me espantou muito. Desiludi-me com algumas pessoas que tinha em melhor conta (Castro Caldas, Anacoreta Correia, Nuno Lobo Antunes, coisas que acontecem) e vi novas caras o que é óptimo. Dum lado, Kátia Guerreiro revelou uma pobreza intelectual confrangedora, que até passaria não fosse a sua irritante embófia (boa palavra, esta). Não deixei de reparar, no final do programa, na sua alegria por ter feito tão "boa figura" num meio social tão desejado. Rosário Carneiro, com toneladas de classe, teceu delicadas considerações de elevadíssimo bom-senso, mas que simplesmente não colhem. Laurinda Alves, que pouco conheço para além da densa e difícil revista Xis, personificou as minhas piores críticas ao lado do Não. Entrevi-lhe, naquela fronte pasmada de boca meio aberta (talvez pela afronta que fosse discutirem com ela), uma intolerânciazinha mesquinha, uma presunção de superioridade moral e uma pobreza de espírito inquietantes, de meter medo. No outro extremo, quase que me apaixonei pela Marta Rebelo. De cara lavada, figura simples e discurso claro, tocou com inteligência em todos os pontos importantes do momento. Usou a sua formação de jurista muito bem, e o seu bom senso e feminilidade fizeram o resto. Inequívoca e educada.
O sítio da Presidência da República Portuguesa. Boa estética, tecnicamente irrepreensível, preocupado com a acessibilidade. Dá gosto ver, está muito bem feito.