Rescaldo da paródia referendária
Como tenho vindo a dizer desde 1998, os Portugueses não querem saber dos referendos nem dessas coisas lá da política. Num, estava sol e ganhou o Não, noutro chovia e ganhou o Sim. Ambos tiveram abstenção suficiente para fazer corar qualquer Democracia. Triste, mas ainda assim menos triste hoje que em 1998.
Sempre (vá lá, nos últimos seis anos) disse que não fazia sentido referendar esta questão. Por várias razões:
- o Código Penal usa-se quando determinada disposição é consensual, necessária e eficaz. Não é nenhuma das três, no caso.
- De facto, esta é uma questão de consciência, mas o que significa isso? Não deveria isso significar que se restringe à cosciência de cada um? Não deveria isso significar que não deveria estar sujeita à imposição da maioria? Eu acho que sim. Relembrando palavras de Ghandi, "Em assuntos de consciência, a lei da maioria não tem qualquer lugar". Nesse sentido, despenalizar a IVG em 25% do tempo da gestação é, diria, quase obrigatório.
- A pergunta tem consequências assimétricas: uma opção aumenta a coerção estatal sobre os cidadãos (cidadãs, melhor dizendo), enquanto outra a diminui. Votar numa das opções implica impor aos restantes uma visão sobre uma matéria não-consensual (e servir-se dos mecanismos de repressão do estado de direito), enquanto que votar na outra opção não implica qualquer imposição, coerção. Numa democracia liberal, a escolha é clara.
A interpretação dos resultados, no plano prático, provavelmente será igual à que seria caso o referendo fosse vinculativo. Acrescenta-se uma alínea de exclusão da ilicitude ao Código Penal, arranja-se o SNS para poder receber os abortos outrora clandestinos, regulamenta-se a objecção de consciência (quem é objector de consciência é-o para o público e privado) e preparam-se os processos para o acompanhamento e aconselhamento das mulheres que desejem abortar até às 10 semanas. A única diferença será talvez os desprestígio do referendo. Ainda estou para ver uma situação em que acredite na sua bondade.
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