Ordem recusa alterar código deontológico
Quando a racionalidade é toldada pela emoção dos absolutismos religiosos, acontecem disparates destes. Uma grave falta de noção de estado e ética republicana numa instituição que exerce por delegação poderes de soberania, como é a ordem dos Médicos. Eu que não o sou, acho que isto envergonha uma classe, e o dela líder Pedro Nunes desiludiu big time. Esteve bem o ministro.
8 Comentários:
Concordo plenamente contigo. As convicções religiosas são próprias de cada um, são pessoais, os profissionais de saúde devem agir como profissionais que são, com o distanciamento e a objectividade necessários.
Desculpa lá, esclarece-me: que poderes de soberania exerce uma Ordem profissional?..
Por outro lado, fico sem saber se o errado é a Ordem guiar-se por padrões éticos ou se o padrão ético escolhido é que é o errado. Nesse caso, os actos médicos devem ser norteados por uma ética republicana? Como é isso?
O estado delega nas ordens profissionais parte das suas competências de regulação e certificação de algumas profissões. São competências do estado delegadas (e bem) nos praticantes para que se auto-regulem.
Se os regulamentos em causa fossem meramente indicativos ou de recomendação, não haveria problema e - como o bastonário diz - deveriam ser alterados apenas quando houvesse vontade dos próprios médicos.
O problema é que o código deontológico da ordem dos médicos tem carácter "vinculativo" (falta-me a palavra) e há sanções previstas para quem o infringir.
Não se pode portanto permitir que uma associação profissional puna, usando de poderes que lhe foram concedidos para defesa dos interesses públicos relativos à profissão, cidadãos que não infringem nenhuma norma legal. Não tem que ver com ética na profissão médica.
Pedro Nunes acha que esses poderes podem ser usados para a prossecução de agendas (minoritárias ou maioritárias) corporativas. Não podem. Daí o seu défice de ética republicana, essencial para quem exerce um cargo público numa república.
O Estado não delega competências de regulação e certificação em ordens (que, em qualquer caso, não são poderes de soberania): reconhece-as e enquadra-as, porque elas preexistem ao próprio Estado. Ou seja, antes de haver Estado, já havia Ordens, pelo que a intervenção do Estado é um acrescento em relação à auto-regulação.
De resto a «regulação e certificação» de profissões não é um adquirido civilizacional, não é algo que existe necessariamente num Estado. É antes o resultado de um Estado que furiosamente regulamenta e condiciona tudo e todos, como se não houvesse sociedade e autonomia privada. Basta ir a Estados mais liberais para verificar que é possível viver sem um Estado que se preocupa em certificar e balizar legalmente todas as profissões desde a de médico à de auxiliar de higiene empresarial.
Quanto ao Código Deontológico: SÓ TEM a ver com a ética da profissão médica. Deontológico significa isso mesmo. E faz sentido que assim seja. Kant esclareceu muito bem a diferença entre ética e legalidade. Da legalidade cuida o Código Penal e a Assembleia da República; da ética ocupa-se o Código Deontológico e a Ordem dos Médicos.
Como Kant também explicou, ética e lei não coincidem necessariamente. Muitos actos não são ilegais mas são eticamente reprováveis. Naturalmente, um médico não pode actuar apenas em conformidade com o que é legal; tem de actuar de acordo com o que é eticamente aceitável. Por exemplo, um médico pode ir dizer a um paciente de um outro médico que o trataemnto prescrito não é o mais correcto, na «esperança» de roubar o paciente? Não. É ilegal? Não. É a violação de um duplo dever ético, para com o paciente (aproveitar-se de um estado de fragilidade) e para com o outro médico (predação comercial que quebra uma relação de confiança).
E por aí fora.
Devo dizer, em todo o caso, que compreendo a tua preocupação, não vai ser fácil criar um regime jurídico uniforme e totalmente correcto.
PS - Também não sou médico, já agora...
«O Estado não delega competências de regulação e certificação em ordens (que, em qualquer caso, não são poderes de soberania): reconhece-as e enquadra-as, porque elas preexistem ao próprio Estado.»
Ai delega, delega. Elas podem preceder o próprio estado cronologicamente, mas não em legitimidade. Uma ordem responde perante os seus profissionais enquanto que o estado responde perante o povo inteiro.
E a partir do momento em que limitam a liberdade de exercício profissional, passam a ser poderes de soberania.
«De resto a "regulação e certificação" de profissões não é um adquirido civilizacional(...). É antes o resultado de um Estado que furiosamente regulamenta e condiciona tudo e todos, como se não houvesse sociedade e autonomia privada.»
Quem se excede nas regulamentações são as ordens profissionais e aí concordo. Mas, qual o estado mais liberal? Aquele em que as classes profissionais podem condicionar o livre exercício profissional para além do que a lei estabelece, ou um estado em que estas estão submetidas à legalidade vigente, podendo apenas exigir aquilo que por via democrática se estabeleceu serem limitações essenciais? O argumento é bonito, mas está ao contrário.
Kant também disse umas coisas com sentido e eu concordo em absoluto com a separação entre moral e direito, mas há um pequeno pormenor (que eu aliás deixei bem explícito): o código deontológico prevê sanções para os profissionais cujas práticas não lhe estejam conformes. Sejamos claros: O CD, tal como está, limita o direito ao exercício da profissão de médico a alguém que esteja totalmente dentro da legalidade. Não pode.
Se não comtemplar sanções, então aí deve apenas prevalecer a opinião da maioria dos médicos e a conversa de Kant faz todo o sentido. Ficamos todos felizes.
«Naturalmente, um médico não pode actuar apenas em conformidade com o que é legal; tem de actuar de acordo com o que é eticamente aceitável.»
Claro, mas, além de não ser isso que está em causa, daí não decorre que a ética (duma maioria de médicos) se deva sobrepor à legalidade.
Qual minha preocupação em criar um regime jurídico uniforme e correcto? Não percebi.
A ética sobrepõe-se à legalidade?
O que é isso da «ilegalidade»? A ilegalidade é a desconformidade com a lei. O que interessa é a ilicitude de acto, a sua desconformidade com o Direito. O Direito (que compreende mais fontes para além da lei) tece juízos de censura de diferentes graus sobre os comportamentos, conforme a sua gravidade.
Um comportamento pode ser muito censurável e o ordenamento jurídico reage com o maior juízo de censura: é um crime.
Pode não ser tão censurável, por isso não é crime; mas é, por exemplo, uma contra-ordenação.
E pode nem ser uma contra-ordenação mas ser à mesma ilícito: se mandar o meu patrão para um certo sítio não caio na responsabilidade criminal nem na responsabilidade contra-ordenacional, mas não deixo de recair em responsabilidade disciplinar. Ou, no mínimo, contratual.
O aborto era um tipo legal de crime. Por via do referendo deixou de o ser em certas circunstâncias.
Mas há muitas coisas ilícitas que não são crime. Estacionar em cima de um passeio é uma contra-ordenação. Será que por não ser crime se pode argumentar que também não pode ser contra-ordenação? Como posso eu ser multado por uma coisa que não é crime?
Da mesma maneira, o aborto em certas circunstâncias não é crime. Significa isso que praticar um aborto não pode merecer censura disciplinar (que é a aplicada pelas Ordens profissionais)? Não. Pode ser um ilícito disciplinar se a deontologia médica o disser.
Até porque uma das coisas que se discute, à partida, é se o aborto é ou não um acto médico. Por exemplo, o Juramento de Hipócrates (que é milenar) menciona expressamente a proibição de praticar abortos.
Devo ainda recordar que o aborto continua a ser um crime previsto e punido pelo Código Penal; apenas não o é até às 10 semanas.
Em suma, a preocupação deve ser a garantia da criação de um regime jurídico uniforme e correcto.
A preocupação deve ser não sobrepôr valores morais muito próprios e subjectivos ao profissionalismo e à objectividade associadas à prática da medicina.
Não sou jurista nem médica, mas sei que estamos no ano 2007 e sei que não faz sentido uma minoria impôr a sua moralidade pessoal a todos os outros profissionais.
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