A Perda, Informático dixit
Outro dia cheguei ao carro, pus a chave, rodei, e estava aberto. Olhei, tudo vasculhado. O conteúdo do porta-luvas espalhado pelo chão. Aquela sensação de invasão do nosso espaço por um estranho.
-- Que olhos imerecedores teriam visto as minhas coisas?
O terror: a mochila com o portátil! Não estava, claro.
Tinha facilitado. Tinha deixado o portátil na mala do carro, escondido, sem nada à vista. Nem sequer o tinha posto lá antes de deixar o carro. Não houve nada que indiciasse aos sempre atentos indigentes que havia ali qualquer espécie de riqueza, que lhes rendesse alguns trocos que fossem para a "dose". Mas o facto era que ali estava eu, em pé, encostado à porta do carro, de olhar dependurado sabe-se lá para onde, ainda a deglutir a tragédia que é, para um informático, perder o seu computador.
Tranquei o carro (gesto agora inútil, mas enfim), e fui à esquadra da zona. Lá relatei "a ocorrência" e lá deu entrada uma descrição do material furtado numa qualquer base de dados da PSP. Inútil, ou quase, penso eu. Pelo menos serve para as estatísticas, para que se saiba onde é que há efectivamente roubos. Apenas um exercício de cidadania, portanto.
De seguida meti mãos à obra. Não acredito em milagres, mas que los hay, los hay, e tratei de arranjar o número dum arrumador que conheço (o P., que só não é uma lição de vida para aqueles que não percebem o que andam cá a fazer) que vive pelo Intendente onde, consta, vai parar grande parte do material destinado aos receptadores. Lá me explicou os destinos mais prováveis, e só sei que daí a umas horas, me encontrava no próprio do Intendente.
A primeira vez que lá tinha passado tinha sido com o meu pai, se não me engano, a caminho da fábrica de azulejos Viúva Lamego, propriedade duma tia-avó. Desta vez a coisa chocou-me bastante menos, não sei se pelos anos que entretanto se passaram, se pela efectiva melhoria do panorama da zona. O que sei é que todos deviam passar por lá pelo menos uma vez, especialmente a malta da ética de convicções, meio antropófoba.
O meu plano era vago, vaguíssimo. O P. tinha-me dito "passas lá, topas a cena, 'mordes' - tás a ver? - e depois ficas ali pelo chafariz..." Pois. Podia ser que alguém que eu "mordesse" me viesse perguntar se eu queria um portátil roubado. De facto veio alguém, mas o que perguntou foi se aqui o "fofo" tinha lume. De forma polida deixei que a conversa chegasse ao convite para ir "para o quarto" - o que levou 10 segundos - e neguei simpaticamente pois estava "à procura de outra coisa". Arregalou os olhos - "que outra coisa?!" - e despediu-se. Ainda dei mais uma volta, na esperança de algum acto de Deus me colocar na pista certa, mas é claro que acabei na pastelaria mais próxima a comer uma tosta, a enviar mensagens de arrependimento (tinha faltado a um compromisso e achei que estava a ser castigado por isso) e a olhar para ontem, à espera que caíssem sapos do céu, e tudo voltasse a fazer sentido.
À saída ainda falei com uns polícias que ali estavam, que entenderam a causa, e que me recomendaram a passar na feira da ladra, pelas 5 da manhã. Pois bem, assim será. Toca de ir para a faculdade que há um trabalho para fazer. Eram umas 5 da tarde. Pelas 5 da manhã, saí da faculdade em direcção à dita feira. Aqui o plano já era mais claro: encontrar portáteis ou mochilas de portáteis, dar o mínimo de informação possível, ser discreto e cusco. Resultado: bola. Fui dormir. Até a &%#$ da escova de dentes estava na mochila! Arghh!
Uns dias depois liga-me o P. a avisar-me que tinha havido uma rusga no Intendente na qual tinham apreendido alguns portáteis. Ainda cometi a ingenuidade de tentar chegar ao material apreendido pelas vias normais dum cidadão em diálogo com as instâncias policiais, começando pelo 21-policia que dá para o comando. Resultado: uns 5 euros em chamadas, tempo e paciência perdidos, ninguém me sabia informar de nenhuma rusga que tivesse havido. Um amigo que tem amigos fez um telefonema e meia hora depois já se interrogava os próprios executores da operação (à paisana) sobre o portátil em causa. Lamentavam, mas não havia nenhum com aquela descrição.
Ainda passei no DIC de Alcântara, nada; falta passar na secção de espólio do DIAP, nessa vã esperança, cada vez mais ténue, de recuperar parte da minha vida que naquela noite foi parar às mãos dum qualquer amontoado de células que vagueia por aí, e que nem sequer percebe que um resgate lhe valeria bem mais do que a venda, tendo, ainda por cima, os meus contactos assim que liga o equipamento e este lhe pede a password.
É uma lição que não deveria ser preciso aprender, mas lá que está aprendida, oh se está. Não estava era à espera que doesse tanto perder um computador. A sério, é o verbo certo: doer. É inquietante a falta que a informação faz. Agora, estoicismo e resiliência, é o que é preciso.
Etiquetas: episódios
2 Comentários:
caí aqui por acaso, mas gostei do que vi (li)
abraços
Gosto meu querido Vaskinho! Fiquei presa ao teu ilariante episódio.
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial